top of page

INSTRUÇÃO PARA LEITURA

A história está disponível tanto em forma de podcast, quanto em forma escrita, sendo inclusas no podcast contribuições em áudio feitas pela própria Bertha no início do século XVI. E na versão escrita,  fotos e documentos referentes a cada trecho da história.

O DESFILE DE MODA

O ano era possivelmente 1956, todos os  preparativos já estavam prontos e Madame Bertha sentava-se diante da passarela à espera de que as modelos começassem a entrar. Inquieta, ela olhava para a barriga de gravidez, a fim de se acalmar. Gosto de pensar que quando suas peças começaram a passar em frente ao público do Copacabana Palace, ela sentiu-se realizada, com a sensação de que havia concluído mais uma conquista, que  todo o trabalho árduo não exibido no palco, e todo o esforço, tanto dela, quanto de sua equipe de costureiras, valera a pena, dado o resultado final. Da mesma forma que isso acontece quando eu encerro algum projeto. Gosto de pensar que herdei isso dela. Tudo que ela havia passado, toda sua trajetória fascinante levaram àquele glamoroso desfile no Copacabana Palace.

Bertha_edited_edited_edited_edited.jpg

A INFÂNCIA

Nascida Beila Stulman no dia 12 de novembro em meados dos anos 20 em uma família de classe média baixa, passou uma parte de sua infância em Britchive, uma cidadezinha na Romênia, fundada em 1838. De acordo com suas próprias palavras, o município era tão pequeno, que para que alguém entrasse, outra pessoa teria que sair, para que coubesse. Uma cidade pequena, mas que escondia em suas três ruas acontecimentos e pessoas fascinantes, como a trágica noite em que o prefeito da cidade fora assassinado  por ser judeu, também era o caso da esposa do açougueiro, que possuía uma filha também chamada Beila, que se tornou uma estilista famosíssima na época. Além disso, havia o jornal falado, um sujeito que se locomovia de canto a outro na região anunciando em yidish os principais acontecimentos da cidade.

As ruas de Britchive possuíam quantidades quase inestimáveis de lama, além de não haver água encanada. As casas eram em maioria baixas, e os vizinhos tinham o hábito de sentar-se sobre os telhados para conversarem  sobre o dia a dia.

bertha_fami%C3%8C%C2%81lia_edited.jpg

Moses e Hind (os pais), e os filhos (da direita para a esquerda) Adolf, Beila, Boris, Samuel, Natan e Ana

A FAMÍLIA

Beila nasceu em uma família judia, composta por seu pai, Moshe Stulman e sua mãe Rifca, e foi a segunda dos seis irmãos da família. Além deles, também havia seu avô, Berale Munimus, dono de uma delicatessen, e sua avó Hind Munimus, ambos por parte de mãe, além de inúmeros tios e primos, incluindo tia Rosa, que teve extrema importância em sua vida. 

Beila era uma aluna excelente, e que sempre era chamada para ler poemas e textos quando havia visitas na pequena escola. Passou a infância observando o pai sempre ligado a movimentos judaicos e a mãe, como a maior parte das mulheres na época sendo dona de casa.

O casal havia se conhecido de maneira curiosa, visto que Rifca, mãe de Beila e primogênita de sua família, havia se apaixonada por Cooperman, um rapaz da vizinhança, mas não pôde se casar com ele, pois seus pais já haviam planejado seu casamento com Moshe, pai de Beila. Cooperman, por sua vez, fora prometido a uma prima, e teve que se despedir de sua amada. Assim, Rifca e Moshe tiveram que se casar, e acabaram formando uma grande família.

Moshe, pai de Beila era de Hotin, uma cidade grande em comparação com Britchive, sua família, no entanto era reduzida, composta apenas por seus pais, e duas irmãs. Durante a infância, Beila passou um tempo lá, e conta que sua tia extremamente religiosa, a fazia visitar hospitais judaicos toda sexta feira para levar comida aos necessitados. Beila conta também, que na época, o antissemitismo na Rússia era tão grande, que um dia, certo homem adentrou clandestinamente o país, e teve suas duas pernas amputadas, sendo obrigado a voltar para sua cidade de origem.

(4).png

ROSA

Já sua tia Rosa, nunca gostou de morar em uma cidade pequena, sendo assim, na idade adulta, se mudou para Chernivtsi, um município um pouco maior, colonizado na época pela Áustria, onde buscou emprego em uma casa noturna de cabaré, trabalhando como caixa. Conta-se que Rosa era tão linda, que certos homens que passavam, duelavam por ela, chegando até a se machucar. Mas nenhum deles nunca conseguiu nada com a moça. 

Rosa enviava frequentemente dinheiro e presentes para os pais de Beila em Britchive, e aos poucos, os habitantes da pequena cidade começaram a emigrar. Não diferente, quando Beila possuía cerca de 8 anos, sua família se mudou para a grande cidade a encontro de Rosa.

geometria.png

CHERNIVTSI

Na época, não possuíam muito dinheiro, e acabaram se mudando para o um porão, vivendo apertados, porém com o tempo, Rosa conseguiu ajudar a família a se mudar para um apartamento maior, e Beila foi matriculada em uma nova escola.

Chernivtsi era uma cidade grande, conhecida como pequena viena. Lá, havia bondes, um teatro municipal, óperas, cafés e universidades maravilhosas, seu apartamento possuía tamanho razoável, e sua mãe se deu ao luxo de instalar uma banheira em sua cozinha, com um mecanismo movido a carvão, que esquentava a água dos banhos da família. Nesta época, Rifca engravidou de sua última filha, Anna.

Rifca tentou abortar de inúmeras maneiras, pois já possuía 5 filhos e não queria mais um, porém, as tentativas foram em vão. O bebê nasceu saudável, de um parto feito em casa, e acabou completando a família, mas tornando a situação mais apertada ainda.

O pai, trabalhava em uma fábrica de tecidos e ainda lecionava hebraico, mas o valor que ganhavam ainda era muito baixo, Beila afirma que já foi expulsa da escola inúmeras vezes, pelos atrasos no pagamento da mensalidade, e que se sentia muito envergonhada por isso, pois os professores o anunciavam em voz alta diante da turma inteira. Isto obrigou Rifca a alugar sua cozinha para uma família, fazendo com que ela conseguisse pagar a escola de Beila.

A família vivia uma vida apertada, mas até agradável em Chernivtsi, mas após um tempo, Rosa se mudou para o Brasil, e conseguiu uma carta oficial para que a família de Beila pudesse vir também.

RIO DE JANEIRO

 Sendo assim, na década de 30, quando Beila tinha 12 anos, ela, seus pais e irmãos, acompanhados da avó Hind, vieram para o Brasil, e todos tiveram que mudar seus nomes, para versões similares, porém em português. Sendo assim, Beila Stulman passou a se chamar Bertha Stulman.

Rosa, lhes ajudou a acharem moradia, e logo, casou-se. Seu então marido, acabou ganhando na loteria e comprou uma fábrica de cadeiras de balanço, sendo assim, conseguindo uma renda maior para ambos.

Ainda assim, a vida deles era apertada. O pai de Bertha, arranjou emprego em uma fábrica de tecidos no Rio, Bertha costurava e fazia pequenos consertos em roupas para fora, seu irmão mais velho, Adolfo, começou a trabalhar em uma padaria na cidade, e outro irmão, Bóris começou a trabalhar em uma firma de lavagem garrafas.

Tudo estava indo bem, até que tia Rosa, precisou fazer uma operação. Bertha e a família, visitaram a parente inúmeras vezes, e o cirurgião que cuidou da moça, acabou desenvolvendo afeto por Bertha, que possuía cerca de 13 anos na época. Sendo assim, ele a matriculou no colégio Pedro II e ofereceu após sua formatura, pagar a mensalidade de sua faculdade, caso Bertha escolhesse medicina, a jovem, demonstrava interesse pela oferta, porém seu pai, Moisés não permitiu, pois em sua opinião, caso Bertha obtivesse um diploma, iria querer se casar com um homem também formado em medicina, sendo que a maior parte dos rapazes judeus na época, não possuíam tal qualificação. Casar-se com alguém de outra religião, era algo muito mal visto pelas pessoas na época.

Rosa conseguiu trazer mais familiares de Bertha para o Brasil, a maior parte deles veio até meados dos anos 40. Porém, alguns deles, infelizmente foram levados a campos de concentração no período da segunda guerra.   

Bertha, foi matriculada em uma escola judaica no Rio de Janeiro, mas para conseguir pagar a mensalidade, acabou tendo que pedir um emprego de secretária em seu colégio. Entretanto, acabou trabalhando no ônibus escolar, cuidando das crianças mais novas. Seu pai, ao descobrir, ficou revoltado e a tirou da escola. Sendo assim, Bertha foi matriculada em um curso rápido de costura.

COSTURA

Bertha, no início, estava relutante quanto a  estudar costura, porém, possuía um talento para este ofício, e acabou encerrando o curso após um mês de prática, bem antes das demais estudantes, que teriam que completar três meses.

Bertha começou com seu trabalho na costura aos dezesseis anos. Sua tia Rosa, que possuía o que ela chamava de tino comercial, teve uma ideia genial para a época, onde Bertha comprava os próprios tecidos, e fazia as peças de roupas com estes, esta ideia foi revolucionária, pois em geral, os fregueses levavam a própria fazenda e as costureiras lucravam apenas com a mão de obra. Comprando os tecidos, Bertha lucrava também com estes.

O PRIMEIRO CASAMENTO

Bertha começou assim, a ganhar o próprio dinheiro, e foi em um dia, em um baile de formatura de uma faculdade de medicina que Rosa a levara, que Bertha conheceu e se apaixonou por Célio, um dos formandos. Célio vinha de uma família trabalhadora de cristãos novos.

Neste tempo, Os pais, irmãos e a avó de Bertha se mudaram todos para São Paulo, e Rosa, ficou com Bertha no Rio de Janeiro. Em uma de suas viagens para visitar a família, conheceu David Rosenberg, que se apaixonou pela jovem e pediu sua mão. Bertha, no entanto, já estava namorando Célio.

Em 1936, após um tempo namorando, Bertha se casa com Célio. Conta ela, que seu pai não aprovou o casamento com um não judeu, sendo Moisés, o único membro da família que não compareceu ao evento.

Bertha passou muitos anos casada, porém o homem a traía frequentemente, e ela estava insatisfeita com a relação. Entretanto não poderia se divorciar, pois havia parado sua carreira de costureira, já que seu marido a sustentava.

O BILHETE DE LOTERIA

Certo dia, em meados de 1938, decidiu apostar na loteria. O rapaz que estava vendendo os bilhetes a entregou o primeiro que viu, porém Bertha, viu em sua mão um bilhete que terminava em 13. Como este era seu número da sorte, solicitou que o jovem o trocasse, e no final, acabou ganhando o prémio em dinheiro. Como estava insatisfeita na relação, optou por não contar ao marido.

A primeira coisa em que pensou ao receber o dinheiro, foi em enviar á sua família em são paulo, que vivia em situação muito precária, para que comprassem uma casa  porém Rosa, e seu “tino comercial” a impediram, pois Caso Bertha o fizesse, não haveria dinheiro suficiente para pagar os impostos e as contas e manter a família no imóvel.

MAISON BERTHA

Naquele momento, Bertha precisava de estabilidade financeira, pois estava decidida a pedir o desquite de seu marido e ainda comprar uma casa e atender às necessidades financeiras de sua família. Sendo assim, juntamente a Rosa, comprou material de costura e montou um atelier.

Bertha começou então a desenhar e produzir roupas para as mais diversas pessoas, e sua tia, Rosa cuidava das finanças. Além disso, Bertha deu aula de corte e costura. Após um tempo, conseguiram dinheiro o suficiente para comprar uma casa para sua família em São Paulo. No entanto não para que ela pudesse se desquitar de Célio.

quando Bertha completara vinte e oito anos, sua avó, Hind acabara adoecendo e falecendo, seguida pela mãe de Bertha, seu pai então ficara sozinho, com seus cinco filhos em São Paulo.

Bertha, foi então, até a cidade, e ajudou seu irmão, Bóris a conseguir um emprego no Banco Holandês, para que conseguisse fazer seu próprio dinheiro. E aos 32 anos conseguiu se separar de Célio, e passou quatro anos desquitada. Durante sua fase de solteira, passou por uma período muito difícil, em que sofreu de depressão, ao mesmo tempo que inúmeras vezes fora procurada por homens que só se interessavam por seu corpo. Porém, após anos de análise, conseguiu se sentir melhor, e conheceu através de uma amiga Jacob Kutno.

Rosa, Bertha e Bóris comemorando seu emprego no banco holandês

JACOB KUTNO

Jacob era um homem um pouco mais velho, que viera da polônia com sua família para fugir do holocausto. O homem conseguiu ganhar dinheiro vendendo produtos de porta em porta, e acabou assim, fundando o jornal israelita, primeiro jornal judaico em português no Brasil. O que democratizou o acesso aos jornais aos judeus que não falavam em yidish ou em hebraico.

O CASAMENTO

Não demorou muito, para que Bertha e Jacob se casassem, e Bertha se tornasse Bertha Kutno. No altar, usou um vestido com saia volumosa e um véu armado, e em 1955, ela engravidou de seu primeiro filho, o qual chamaram de Isidoro. Alguns anos depois, Bertha deu à luz, Rosana, sua segunda e última filha. Jacob permaneceu casado com ela, até que este faleceu em 1971. Após sua morte, Bertha tomou as rédeas do Jornal Israelita, um ambiente dominado 

Identificação de Jacob Kutno em seu jornal

Familia Rafa6.jpg

O LEGADO DE BERTHA

Voltando alguns anos no tempo, para 1956, Bertha estava entusiasmada, ao aguardo da tão esperada entrada das modelos. A sua volta, seus familiares a observavam com uma mistura de emoção e orgulho, pois sabiam que não haviam limitações para a capacidade e determinação de Bertha. 

Os holofotes se acenderam e as peças começam a desfilar em frente ao público. A multidão, observava com exultação as roupas, que vestiam as modelos, e ao fim do desfile, Bertha fora aplaudida de pé por todo o público. 

Bertha, então, com seu jeito bem humorado de ser, sua determinação, seu talento e sua ética, se tornou bem sucedida afinal, tanto em sua vida pessoal, quanto a profissional. Apesar de todas as adversidades de ser mulher e ser judia na época. Bertha transformou-se em exemplo, para seus irmãos, filhos, netos e outros familiares e amigos. 

Bertha_edited_edited_edited_edited.jpg

EPÍLOGO

Na década de 90, nasce sua primeira neta, Julia Freind, seguida de Dora Freind, ambas trabalham como atrizes nos dias de hoje. E em 2004, meses após o nascimento de seu terceiro neto, que nos dias de hoje, conta para o mundo, sua fascinante história, Bertha parte desse mundo, deixando como bagagem sua personalidade cativante, jornada de vida, e valores morais. Por isso, hoje afirmo que Maison Bertha é passado, presente e futuro.

©2020 por Kutno

bottom of page